A capital da esperança: a vida invisível nas ruas de Brasília
Resumo
O caso apresenta os desafios de Tadeu, um gestor público do Distrito Federal, ao lidar com a crescente população em situação de rua na capital do Brasil. Com a ausência de informações sobre essa população vulnerável, o gestor deve realizar um levantamento detalhado das condições de vida dessa população e avaliar as políticas públicas existentes, muitas vezes ineficazes e fragmentadas. Ele enfrenta dificuldades relacionadas à coordenação intergovernamental, restrições orçamentárias e preconceitos sociais, que dificultam a reintegração dessas pessoas na sociedade. Além disso, precisa desenvolver e monitorar soluções inovadoras e sustentáveis, respeitando os direitos humanos e garantindo a dignidade dessas pessoas.
Palavras-chave: políticas públicas; população vulnerável; gestão pública.
A criação de um Grupo de Trabalho
Tadeu é um gestor público recém-nomeado na Secretaria de Desenvolvimento Social do Distrito Federal. Cheio de ideias inovadoras e com um histórico de sucesso em programas sociais em outras regiões do Brasil, ele se depara com um dos maiores desafios de sua carreira: enfrentar os problemas da crescente população de pessoas em situação de rua na capital do país.
A questão das pessoas em situação de rua no Distrito Federal é um problema social de grande relevância, refletindo as complexidades e desafios enfrentados por administrações públicas na tentativa de mitigar esta situação. Brasília, apesar de sua modernidade e planejamento urbano, não está imune a esse fenômeno. A capital do país, conhecida por seus prédios governamentais e infraestrutura avançada, também abriga uma população significativa de pessoas em situação de rua.
Segundo dados de 2023 do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, Brasília tem 7.924 pessoas nessa situação, o que representa 0,28% da população da capital. Essa informação com o percentual que corresponde ao número de pessoas em situação de rua no DF foi amplamente divulgada nas mídias e nos veículos de imprensa, trazendo uma imagem negativa das políticas públicas adotadas pelo Estado.
O Governador do Distrito Federal, preocupado com a repercussão negativa do quantitativo de pessoas vulneráveis na capital, formou um grupo de trabalho para tratar do problema. Tadeu, com sua equipe multidisciplinar, foi encarregado de uma série de desafios. A primeira missão era realizar um levantamento detalhado e preciso da população em situação de rua, indo além dos números para entender as condições de vida, as necessidades e as barreiras enfrentadas por essas pessoas. Isso significava coletar dados demográficos, históricos de saúde, e detalhes sobre a trajetória de cada indivíduo até chegar às ruas.
Com essas informações, o grupo de trabalho precisaria avaliar criticamente as políticas públicas existentes. Tadeu sabia que era necessário olhar para além das falhas evidentes e identificar onde exatamente as políticas estavam falhando — seja na provisão de abrigos, na assistência social ou nos serviços de saúde. Ele também precisava encontrar soluções inovadoras e sustentáveis. Isso envolvia não apenas a criação de novos programas, como de mais abrigos e serviços de reabilitação, mas também a implementação de estratégias que incentivassem a reintegração dessas pessoas na sociedade de maneira digna e eficaz.
A coordenação intergovernamental era outro desafio significativo. Brasília, sendo o centro político do país, exige um esforço coordenado entre a União, o governo do Distrito Federal, os municípios e as Organizações da Sociedade Civil (OSCs). Tadeu sabia que essa articulação era crucial para maximizar os recursos disponíveis e evitar duplicações de esforços. Com restrições orçamentárias severas, ele precisava ser criativo na alocação de recursos, explorando parcerias com o setor privado e buscando financiamento de organizações internacionais.
Além de todas as questões logísticas e estratégicas, Tadeu e sua equipe também tinham que lidar com a percepção pública e a sensibilização da comunidade. Muitos moradores de Brasília viam as pessoas em situação de rua com desconfiança ou preconceito, o que dificultava a mobilização de apoio e recursos. Portanto, era essencial trabalhar na conscientização pública, promovendo a empatia e o entendimento das causas que levam alguém a viver nas ruas.
Finalmente, o grupo de trabalho precisava estabelecer mecanismos de monitoramento e avaliação para garantir que as novas políticas públicas e programas fossem eficazes e adaptáveis. Tadeu sabia que a resposta ao problema da população em situação de rua não poderia ser estática; seria um processo contínuo de ajuste e melhoria.
Afinal, quem são essas pessoas?
Ao assumir a missão de compreender a população em situação de rua, Tadeu se deparou com um panorama diversificado. Os 7.924 indivíduos constituem um grupo populacional heterogêneo que partilha de pobreza extrema, vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e inexistência de moradia convencional regular.
Em relação ao perfil demográfico, o gestor constatou, a partir de um estudo do Instituto de Pesquisa e Estatística do Distrito Federal (IPEDF, 2022), que esse público é composto majoritariamente por homens (cerca de 80,7%) com faixa etária predominante entre 25 e 45 anos. No que tange os locais de concentração da população, notou-se que a maior incidência ocorre nas áreas centrais, com maior percentual no Plano Piloto (24,7%), seguida por São Sebastião (13,1%), Ceilândia (12,59%) e Taguatinga (11,95%).
Também descobriu, a partir desse mesmo estudo, que 71,1% dessas pessoas se autodeclaram negras, e 11,6% indígenas, conforme dados da Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (PDAD, 2021). Além disso, 3,5% são pessoas transsexuais, e há 244 crianças e adolescentes vivendo nas ruas do Distrito Federal.
Essas pessoas ocupam os espaços públicos como locais de moradia e de sustento por um período ou permanentemente, assim como utilizam unidades de acolhimento para pernoites ou como moradia provisória.
Esses indivíduos enfrentam barreiras significativas, como a falta de acesso a cuidados de saúde adequados, oportunidades de emprego e redes de apoio social. Muitos têm histórias de vidas fragmentadas, com vínculos familiares interrompidos, históricos de violência ou abuso, e experiências de discriminação que dificultam ainda mais sua reintegração na sociedade. Essas condições criam um ciclo vicioso, onde a ausência de recursos e apoio os mantém em uma situação de vulnerabilidade contínua.
Um olhar para as políticas públicas existentes
Após compreender melhor sobre as peculiaridades das pessoas em situação de rua no Distrito Federal, Tadeu solicitou à Secretaria de Desenvolvimento Social do Distrito Federal um levantamento acerca das políticas públicas desenvolvidas na região, voltadas para esse público.
O Distrito Federal conta com Centros de Referência Especializados para População em Situação de Rua (Centros POP) que oferecem uma série de serviços, incluindo acolhimento, alimentação, higiene, atendimento especializado e encaminhamento para outros serviços da rede socioassistencial. Estes centros são uma peça-chave na tentativa de reintegração social e assistência contínua às necessidades básicas dessa população.
Além disso, foi comunicado, pela secretaria, sobre a existência de programas de assistência à saúde e parcerias com a defensoria pública para garantir o acesso aos direitos básicos. No entanto, apesar dessas iniciativas, os desafios permanecem, especialmente na articulação e eficácia das ações intersetoriais, na oferta de abrigos suficientes e no atendimento às necessidades específicas de saúde mental e dependência química.
A coordenação intergovernamental
Durante uma reunião com o grupo de trabalho, composto por profissionais da saúde, educação e segurança, foram repassadas todas as informações pertinentes, o que abriu espaço para discussões. Com as demandas trazidas por órgãos diferentes, ficou evidente a necessidade e a importância de tratar do assunto com foco na coordenação intergovernamental, por meio de uma política distrital integrada, onde diferentes secretarias e órgãos do governo, como as Secretaria de Desenvolvimento Social, de Saúde e de Segurança Pública, pudessem colaborar para fornecer serviços essenciais. Incluindo desde o acolhimento em abrigos até a assistência médica e capacitação profissional. Além disso, parcerias com ONGs e instituições privadas desempenhariam um papel importante, complementando os esforços do governo e proporcionando uma rede de apoio mais ampla.
Embora a maioria estivesse de acordo com o modelo intergovernamental, uma pessoa do grupo de trabalho questionou se a fragmentação das ações e a falta de coordenação contínua não poderia levar a duplicidade de esforços ou, pior ainda, deixar lacunas nos serviços prestados.
Outro apontamento realizado na reunião foi o fato de que muitas das políticas implementadas são de natureza emergencial, com poucas iniciativas de longo prazo que realmente abordem as causas estruturais da situação de rua, como a falta de habitação acessível e a precariedade do mercado de trabalho. Isso aponta para uma necessidade urgente de políticas mais sustentáveis e integradas, que possam garantir não apenas uma resposta imediata, mas também soluções duradouras para esse problema social.
A questão do orçamento
Ciente da importância de alinhar as políticas públicas com o orçamento necessário, Tadeu analisou os números e ficou alarmado com a realidade financeira.
O Distrito Federal destinava uma quantia relativamente pequena para programas de assistência social. Dessa quantia, um percentual ainda menor era destinado para pessoas em situação de rua, sendo que o montante incluía gastos com abrigos, Centros POP, programas de capacitação e reintegração social, além de apoio emergencial e alimentação. Ainda, os custos com pessoal, manutenção de instalações e parcerias com OSCs, que são essenciais para a execução dos serviços e consomem uma grande parte desse orçamento.
Tadeu ficou preocupado porque ele sabia que quando as políticas não estão adequadamente ajustadas ao orçamento, há o risco de projetos importantes serem subfinanciados, levando à sua execução parcial ou inadequada. Além disso, uma má alocação de recursos pode resultar em frustração tanto para os gestores públicos quanto para a população, que não vê suas necessidades atendidas.
Lições da rua: quando o gestor público enfrenta a realidade
Outro ponto importante para definir as ações a serem tomadas frente a situação do quantitativo das pessoas em situação de rua é compreender a relação dessas pessoas com as ruas. Então, Tadeu pediu para acompanhar durante um dia o trabalho de abordagem social, desenvolvido através de OSCs parceiras.
Durante o trabalho, ele observou na prática que a saída das ruas de pessoas em situação de vulnerabilidade é um caminho com diversos obstáculos, muitos dos quais são agravados pelo preconceito e pelos estereótipos sociais. Este fato foi observado claramente quando o grupo foi realizar um trabalho na Asa Norte, bairro nobre do DF. Tadeu foi abordado por uma pessoa do bairro que falou com todas as letras “tem é que tirar essas pessoas daqui, levar para outro lugar e deixar aqui limpo”.
O gestor respirou fundo e teve que explicar, com toda paciência do mundo, que essas visões estereotipadas não apenas obscurecem as circunstâncias variadas que levam alguém a viver nas ruas, mas também dificultam a obtenção de ajuda e suporte necessários para sair dessa condição. Essa situação é um reflexo do conceito de "higienismo", onde a sociedade muitas vezes busca "limpar" o espaço urbano dos mais vulneráveis, em vez de abordar as causas estruturais de sua situação.
Além do estigma social, há barreiras estruturais significativas. A falta de moradia estável dificulta o acesso a serviços básicos como saúde e emprego. As políticas públicas muitas vezes não são suficientemente adaptadas para abordar as necessidades específicas desses indivíduos, deixando-os presos em um ciclo de marginalização.
O preconceito existente na sociedade também se reflete em processos seletivos, onde candidatos em situação de rua frequentemente são descartados sem considerar suas habilidades e potenciais contribuições. Após toda a explicação, a pessoa pareceu não entender absolutamente nada e reforçou: “esse pessoal fica aqui e só serve para desvalorizar o nosso imóvel, tem que tirar mesmo, obrigar esse pessoal a ir para outro lugar”.
Dessa forma, ele teve que ser mais incisivo e explicar que o Estado brasileiro não pode simplesmente obrigar as pessoas a saírem das ruas ou levá-las para um lugar específico devido a princípios fundamentais garantidos pela Constituição Federal de 1988 e os Direitos Humanos.
A Constituição de 1988 assegura a inviolabilidade do direito à liberdade, à dignidade e à segurança (art. 5º, caput), direitos que são pilares do Estado Democrático de Direito. Qualquer ação estatal que obrigue indivíduos a saírem de espaços públicos ou a serem levados para locais específicos sem seu consentimento direto violaria esses direitos.
Além disso, a Constituição garante a inviolabilidade da intimidade, vida privada e a livre circulação (art. 5º, incisos X e XV), o que impede que o Estado intervenha de maneira coercitiva na vida das pessoas sem justificativa legal ou ordem judicial. As ações do Estado devem sempre respeitar a dignidade humana, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, III).
O desafio de medir o impacto social nas ruas
Após meses de trabalho intenso, o gestor e a sua equipe se viram diante de um novo desafio: como medir o impacto das políticas públicas implementadas para as pessoas em situação de rua no Distrito Federal? A missão de monitoramento e avaliação se revelou crucial, pois sem dados claros e precisos, seria impossível ajustar e melhorar as estratégias adotadas. Para isso seria necessário mecanismos eficientes para acompanhar o progresso dos programas e iniciativas.
Então, o grupo de trabalho começou a elaborar um sistema de indicadores de desempenho que incluía métricas como o número de pessoas atendidas pelos programas de assistência social, a quantidade de indivíduos que conseguiram sair das ruas e a melhoria nas condições de vida daqueles que ainda se encontravam em situação de vulnerabilidade. No entanto, os dados não eram tão confiáveis, pois a natureza da população em situação de rua é fluida, muitas pessoas mudavam de local frequentemente, tornando difícil o acompanhamento contínuo.
O grande dia: apresentação do plano proposto pelo Grupo de Trabalho
Com todos os dados e uma equipe dedicada, Tadeu agora enfrenta o desafio mais difícil de sua jornada, transformar uma coleção de informações em um plano de ação coeso e eficaz. As pressões são grandes, e o tempo é escasso.
Cada dado, cada história coletada é um pedaço de um quebra-cabeça que ele precisa montar para apresentar soluções concretas ao governador.
Eis o dilema: como propor ações efetivas que sejam ao mesmo tempo realistas e impactantes? Ele precisa considerar os recursos limitados do Distrito Federal, a necessidade de coordenação entre diferentes níveis de governo, e o desafio de combater preconceitos sociais profundamente enraizados. Além disso, deve assegurar que suas propostas sejam inclusivas, respeitando a diversidade de necessidades dentro da população em situação de rua.
Perguntas para o debate
1 - Quais são os principais desafios que Tadeu enfrenta ao lidar com o crescente número de pessoas em situação de rua no Distrito Federal, considerando restrições orçamentárias e políticas?
2 - Quais são os principais obstáculos legais e políticos que Tadeu deve considerar ao propor soluções para as pessoas em situação de rua?
3 - Como a articulação entre diferentes níveis de governo (União, estados, Distrito Federal e municípios) pode ser melhorada para abordar de forma mais eficaz a questão das pessoas em situação de rua?
4 -Como o uso de ferramentas de gestão pública pode ajudar Tadeu a desenvolver e avaliar programas de assistência às pessoas em situação de rua?
5 - Como Tadeu pode garantir que as políticas públicas propostas respeitem os direitos humanos e sejam implementadas de forma ética, considerando o princípio da dignidade humana?
6 - Como os preconceitos e estereótipos sociais podem impactar a eficácia das políticas públicas para pessoas em situação de rua?
Referências bibliográficas:
IPEDF. Perfil da população em situação de rua do Distrito Federal. Brasília, 2022. https://segov.df.gov.br/df-nao-tem-o-maior-percentual-de-pessoas-em-situacao-de-rua/
Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. MDHC lança relatório sobre pessoas em situação de rua no Brasil; estudo indica que 1 em cada mil brasileiros não tem moradia. 14 de set. 2023. https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2023/setembro/mdhc-lanca-relatorio-sobre-pessoas-em-situacao-de-rua-no-brasil-estudo-indica-que-1-em-cada-mil-brasileiros-nao-tem-moradia#:~:text=Pessoas%20pardas%20(55%25)%20e,segunda%20mais%20frequente%20(14%25)
CODEPLAN - Governo do Distrito Federal. Companhia de Planejamento do Distrito Federal. Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (Pdad). 2021. https://www.codeplan.df.gov.br/wp-content/uploads/2022/05/Apresentacao_Distrito_Federal.pdf
Sobre os autores
Ana Luiza Araújo Dantas de Souza Barros é aluna do Departamento de Administração (ADM/FACE) da Universidade de Brasília (UnB). É membro voluntário da Casoteca ADM. E-mail: aninhalulu2003@gmail.com
Jéssica Lainne Ramos Tavares é aluna do Departamento de Administração (ADM/FACE) da Universidade de Brasília (UnB). É membro voluntário da Casoteca ADM. E-mail: jessicalainnet@gmail.com
Adalmir de Oliveira Gomes é Professor do Departamento de Administração e do Programa de Pós-Graduação Profissional em Administração Pública (PGAP) da Universidade de Brasília (UnB). Doutor em Administração pela Universidade de Brasília (2014) com pós-doutorado na School of Public and Environmental Affairs, da Indiana University, USA (2019). Autor de diversos trabalhos e artigos publicados em revistas científicas nacionais e internacionais na área de Administração Pública. Líder do grupo de pesquisa Administração da Justiça (AJUS) e organizador do Encontro de Administração da Justiça (EnAJUS). E-mail: adalmir@unb.br
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