O império do entretenimento e do lazer: como o Cirque du Soleil pode enfrentar o futuro pós-Covid?
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Helena Costa
O império do entretenimento e do lazer: como o Cirque du Soleil pode enfrentar o futuro pós-Covid?
Helena Araújo Costa
Gustavo do Prado Afonso
Walkiria Maria Capucho Truss
Graziela Miranda de Azevedo Rodrigues
Ana Vitoria Muniz Bokos
1. A História da Empresa: das apresentações de rua à referência da indústria do entretenimento
Em 1984, Guy Laliberté, Daniel Gauthier e Gilles Ste-Croix, ex-artistas de rua de Baie-Saint-Paul, fundaram o Cirque du Soleil, que se tornaria uma das maiores empresas de entretenimento do mundo.
A empresa começou com um show financiado pelo governo canadense, em 1984, como parte das comemorações dos 450 anos do país. A produção foi um grande sucesso, tendo o Cirque sido definido como um circo contemporâneo, ao não utilizar animais e ter grande ênfase na música, no figurino e uma incrível cenografia.
O Cirque du Soleil se expandiu rapidamente nas décadas de 1990 e 2000, passando de 1 para 19 shows em mais de 300 cidades em todos os continentes do mundo, empregando 4.900 pessoas de 50 países e gerando uma receita anual de aproximadamente US$ 1 bilhão. Ainda, passou a contar com shows permanentes em Las Vegas assistidos por mais de 9.000 pessoas por noite, somados a mais de 100 milhões de pessoas que assistem aos seus shows em todo o mundo.
Os fundadores Daniel Gauthier e Gilles Ste-Croix deixaram a empresa em 2000. No mesmo ano, Daniel Lamarre foi contratado para administrar a empresa, tendo sido nomeado CEO em 2006. Em 2015, Guy Laliberté vendeu 90% de sua participação para uma empresa de capital privado dos Estados Unidos nomeada TPG Capital e um grupo de investimento chinês chamado Fosun, mantendo posse de 10% da empresa. As criações da empresa receberam vários prêmios e, em fevereiro de 2020, Laliberté vendeu sua participação restante na empresa para o fundo de pensão de Quebec CDPQ.
A indústria do entretenimento tem considetado o Cirque du Soleil como um grande caso de sucesso e uma marca altamente reconhecida. Enquanto compete indiretamente com outros setores de entretenimento, como filmes, concertos, museus, parques e zoológicos, a empresa se posiciona mais especificamente no nicho da indústria das artes cênicas, oferecendo espetáculos artísticos ao vivo. Este nicho é conhecido por atingir consumidores de uma variedade de grupos demográficos (idade, renda, localização) e observar fluxos de caixa irregulares devido à frequência sazonal e flutuante de espectadores.
O Cirque é mundialmente conhecido como um modelo moderno de circo, utilizando como inspiração sofisticados elementos internacionais de teatro, combinando acrobacia, música e dança em seus shows. Mesmo para os musicais da Broadway, os espectáculos circenses oferecidos se tornaram uma forte referência. O produto final demonstrou um forte apelo para o público de classes altas. Em 2012, Christa Carone, da Forbes Magazine, descreveu o Cirque du Soleil como uma marca consistentemente notável, destacando seu sucesso na performance no Oscar 2012 e o espetáculo Iris no mesmo período, que estabeleceu o recorde de preços de ingressos no Kodak Theatre de Los Angeles, com ingressos vendidos por US$ 253 (aproximadamente R$ 1.300 na cotação de julho de 2021).
A empresa foi pioneira em sua estratégia de marketing e encontrou um crescimento significativo enquanto explorava suas possibilidades sem grandes rivais diretos. Com o tempo, o sucesso comprovado atraiu concorrentes para lançar suas próprias empresas com base neste conceito, atraindo a atenção e sendo reproduzido de alguma forma. Como exemplo, os ex-executivos do Cirque, Franco Dragone e Normand Latourelle, deixaram a empresa e lançaram o Franco Dragone Entertainment Group em 2000 e a Cavalia, Inc. em 2003, respectivamente. [1].
2. O desafio atual do império: recuperação judicial em 2020
A pandemia de coronavírus afetou várias indústrias no mundo desde seu início em 2020. Turismo, viagens, entretenimento e grandes eventos foram extremamente afetados. O Cirque Du Soleil não escapou da situação.
A pandemia já havia atingido fortemente a Ásia (China, Japão, Coréia) e estava se espalhando pelo mundo, afetando Europa, América do Norte e atingindo a América do Sul em março de 2020. Em 21 de janeiro, o primeiro caso de infecção por Covid-19 foi registrado no Estados Unidos, que registrou em 6 de fevereiro o primeiro caso de morte da doença no país.
Em 3 de março, o Cirque du Soleil anunciou o lançamento e a abertura de vendas de Drawn to Life, um novo espetáculo a ser realizado no Walt Disney World Resort, na Flórida. Alguns dias depois, em 13 de março, a empresa publicou a suspensão de shows itinerantes em várias regiões do mundo devido ao avanço da pandemia de Covid-19 e suas implicações para aqueles eventos. Dois dias depois, a suspensão dos shows residentes em Las Vegas. Finalmente, em 17 de março, o recém-lançado show Drawn to Life na Flórida foi suspenso temporariamente.
Em 29 de junho de 2020, apesar da imagem empresarial bem consolidada, o Cirque du Soleil entrou com um pedido de concordata sob a Lei de Acordo de Credores de Empresas ("CCAA") no Canadá e o Capítulo 15 nos Estados Unidos. Apenas três meses depois de cancelar dezenas de shows em todo o mundo devido à Pandemia Covid-19, que atingiu fortemente o setor de entretenimento globalmente, a empresa decidiu dar este passo decisivo.
“Nos últimos 36 anos, o Cirque du Soleil tem sido uma organização altamente bem-sucedida e lucrativa. No entanto, com receita zero desde o encerramento forçado de todos os nossos eventos devido ao COVID-19, a administração teve de agir decisivamente para proteger o futuro da empresa ”[2] disse Daniel Lamarre, presidente e CEO do Cirque. Ele encerra sua fala dizendo "Estou ansioso para reconstruir nossas operações e nos unir para novamente criar o espetáculo mágico que é o Cirque du Soleil para nossos milhões de fãs em todo o mundo."
Por volta daquele período, o grupo havia demitido 3.500 funcionários (95% de sua força de trabalho) e acumulado dívidas de quase US$ 1 bilhão.
3. Aspectos que levaram a empresa à crise em 2020
A decisão tomada pela empresa ocorreu devido a uma confluência de fatores. Dentre eles, três poderiam ser destacados como possíveis motivos.
a. A pandemia de Covid-19
A empresa atribuiu o motivo da falência ao fechamento forçado de seus eventos, medida necessária diante a pandemia de Covid-19. Seus diretores pretendiam reestruturar sua dívida com o apoio do governo e de empresas de investimentos privados.
A abertura do processo de recuperação judicial da empresa aconteceu três meses após as suspensões dos eventos, sendo a interrupção na entrada de receita e falta de caixa para cumprimento de obrigações financeiras contínuas o primeiro motivo para o pedido de recuperação judicial.
b. Alto nível de endividamento antes da pandemia
Mesmo antes da chegada da pandemia, o Cirque du Soleil estava endividado com algumas aquisições feitas com o objetivo de diversificar seus produtos para além dos espetáculos ao vivo pelos quais é conhecido em todo o mundo, buscando acelerar seu crescimento financeiro.
Essas aquisições ajudaram a aumentar as receitas de US$ 882 milhões para US$ 1,04 bilhão naquele momento. Por outro lado, estima-se que a empresa devia aos credores cerca de US$ 900 milhões nesse período. Um relatório da Ernst & Young mostrou que o prejuízo líquido da empresa aumentou gradualmente de US$ 10 milhões para US$ 80 milhões de 2017 a 2019.
O CEO do Cirque du Soleil, Daniel Lamarre, disse que os lucros da empresa totalizaram cerca de US$ 155 milhões em 2019, mas esse valor não inclui juros, impostos ou depreciação. No final de março de 2020, as várias dívidas da empresa somavam quase US$ 1,6 bilhão, de acordo com um documento apresentado ao Tribunal Superior de Quebec.
c. Situação financeira e a falta de entendimento sobre o Cirque du Soleil como uma empresa
O Cirque sempre tentou manter suas raízes humildes e criativas em sua cultura organizacional. Era comum ter um palhaço em reuniões para evitar um clima sério no ambiente. Daniel Lamarre disse uma vez de forma notável: “Se começarmos a pensar como uma corporação, estamos mortos! Nosso ambiente precisa estimular nossas pessoas” [3].
Essa fala pode revelar uma aparente contradição para uma empresa com 4.000 funcionários, ao negar sua visão como uma corporação. Em certo sentido, essa compreensão do negócio pode ter contribuído para a situação financeira.
Desde os primeiros anos, quando o grupo ainda não era o que se tornou, os três fundadores enfrentavam dificuldades financeiras. O primeiro show que fizeram, Os Pernaltas de Baie-Saint-Paul, foi um fracasso financeiro. Naquele momento, eles aprenderam que um show não poderia funcionar se não fosse lucrativo. Além do segundo show, A Feira de Diversões, um misto de workshops e espectáculos ter obtido algum sucesso financeiro, o grupo ainda viria a ter problemas no futuro.
Em 1985, nas primeiras apresentações fora de Quebec, eles tiveram um déficit de US$ 750 mil. Eles não tinham experiência em viajar com o grupo naquela época. Algumas das dívidas foram cobertas pelo Grupo Desjardins e outras pelo governo de Quebec, e ainda gratuitamente por representações de Daniel Lamarre. Isso permitiu que o Cirque continuasse em turnê em 1986. Em 1987, eles lucraram mais de US$ 1,5 milhão em apresentações no Festival de Artes de Los Angeles.
Durante 1988 e 1989 viajaram pelo Canadá e Estados Unidos, porém no final daquele ano a empresa se viu novamente perdida, havendo alguns conflitos de gestão entre seus dirigentes. Contudo, de 1990 a 1999, com uma equipe criativa diferente, os shows encontraram sucesso e prosperidade. Assim, o Cirque enfrenta uma trajetória de altos e baixos financeiros.
No ano de 2000 muitas mudanças aconteceram, Gilles Ste-Croix e Daniel Gauthier deixaram a empresa, e Daniel Lamarre foi trazido por Laliberté para ser o gerente. O Cirque du Soleil, neste momento com quase 2.000 funcionários, decidiu ter um especialista lidando com Tecnologia da Informação e Gestão do Conhecimento (TI e WM), mas sem considerar a TI como diferencial para o sucesso da organização. Para eles, a criatividade, a imaginação e a inspiração tinham o papel principal na empresa.
Na década seguinte, a empresa marcaria presença nos mercados europeu, asiático e pacífico, apresentando grande expansão. Assim, o Cirque du Soleil, desde o início até sua grande década, que foi de 2000 a 2010, teve um rápido crescimento com glórias e fracassos. Por exemplo, são conhecidos no mercado por suas soluções sob medida, logística complexa e pouca documentação sobre seus processos [4]. Ao mesmo tempo, a empresa mantinha vantagens competitivas dos concorrentes e construía uma marca reconhecida, o que também impactava sobre as finanças da empresa.
A principal preocupação de Lamarre era o valor da marca, conforme disse em entrevista em 2011: “Minha principal preocupação é permanecer uma marca relevante, porque meu medo é que um dia, uma criança em algum lugar acorde com uma grande nova ideia que nos faça parecer une chose du passé (uma coisa do passado). É por isso que estamos investindo muito dinheiro em pesquisa e desenvolvimento para que permaneçamos na vanguarda o tempo todo.” [5]. Todo esse esforço é feito para manter sua característica marcante: cuidar da experiência, imaginação e deleite do cliente [6].
4. Reestruturação da empresa: investimentos e compromissos
Para a reestruturação da empresa, os atuais acionistas (TPG Capital, Fosun e Caisse de depot et placement du Quebec) concordaram em junho de 2020 em investir US $ 300 milhões e assumir as responsabilidades do Cirque, incluindo os detentores de ingressos afetados pelos shows cancelados e suporte financeiro para 3.500 trabalhadores demitidos. Enquanto isso a estrutura do governo de Quebec forneceria US$ 200 milhões em financiamento de dívida.
O envolvimento da Investissement Québec exige dos investidores o comprometimento a manter a sede da empresa em Montreal e, também a se comprometem a manter em Quebec as principais liderança da empresa, e recontratar o máximo possível de ex-trabalhadores baseados em Quebec. Os principais compromissos financeiros foram:
• US$ 15 milhões em ajuda financeira para 3.500 trabalhadores demitidos.
• US$ 5 milhões para liquidar contratos pendentes (especialmente empreiteiros sediados em Quebec).
• Reembolsos de programas cancelados devido à pandemia.
A empresa assinou com sucesso um acordo de stalking horse em julho de 2020. Esse acordo de compra normalmente acontece com empresas que estão em processo de falência, buscando leiloar a empresa. Esperando evitar ofertas de baixo preço por investidores, a empresa escolhe um investidor disposto a ser o primeiro a oferecer e negociar um preço base razoável e condições para sua venda. A empresa oferece melhores condições para o primeiro investidor, esperando que os demais ofereçam melhores investimentos no leilão.
Lamarre disse à Radio-Canada em junho de 2020 que cinco outros grupos manifestaram interesse na empresa. O cofundador e ex-CEO da empresa, Guy Laliberté, que vendeu seu controle acionário em 2015 por US $ 1,5 bilhão, também estava interessado na empresa.
No final deste ano agitado, em novembro de 2020, o Cirque du Soleil Entertainment Group confirma o fechamento da transação de venda aos seus credores garantidos e a saída da proteção do credor. A transação fornece à empresa uma base sólida para um relançamento bem-sucedido. Os novos proprietários também concordaram em manter Daniel Lamarre como CEO do Cirque du Soleil Entertainment Group e sua sede em Montreal.
Eles acreditam que o Cirque du Soleil é uma grande marca, para a qual Lamarre sempre trabalhou. Mesmo com dívidas contundentes e muitas incertezas, o Cirque ainda é percebido como uma empresa criativa, inovadora e capaz de encantar o público... e capaz inclusive de recuperar os investimentos feitos nele.
5. Perguntas para debate
a) De acordo com os fatos mencionados, compartilhe sua perspectiva sobre quais problemas teriam mais contribuído para a crise em que a empresa se encontrou.
b) Quais vantagens competitivas o Cirque du Soleil construiu ao longo do tempo?
c) Como o Cirque pode inovar e adaptar seu modelo de negócios e produtos à situação de pandemia?
d) Identifique e descreva um concorrente do Cirque du Soleil. Em seguida, analise como a pandemia afetou a empresa e como ela lidou com as circunstâncias.
e) Sugira duas estratégias que a empresa deve seguir para prosperar seus negócios no futuro e manter a relevância de sua marca, e não se tornar “algo do passado”.
Referências
CIRQUE DU SOLEIL. Cirque du Soleil entertainment group announces comprehensive plan to restart business. Disponível em: https://www.cirquedusoleil.com/press/news/2020/cirque-du-soleil-entertainment-groupcomprehensive-plan-to-restart-business. Acesso em: 24 de nov. 2020.
CIRQUE DU SOLEIL. Cirque du Soleil entertainment group confirms closing of sale transactions and emerge from creditor protection. Disponível em: https://www.cirquedusoleil.com/press/news/2020/cirque-du-soleil-entertainment-groupconfirms-closing-of-sale-transaction. Acesso em: 24 de nov. 2020.
CIRQUE DU SOLEIL. Cirque du Soleil history. Disponível em: https://www.cirquedusoleil.com/press/kits/corporate/about-cirque. Acesso em: 24 de nov. 2020.
FORBES. #1851 Guy Laliberté. Disponível em: https://www.forbes.com/profile/guy-laliberte/?sh=45aa74765aef. Acesso em: 25 de nov. 2020.
GHAZZAWI, ISSAM & MARTINELLI, TERESA & PALLADINI, M.. (2014). Cirque du SOLEIL: An innovative culture of entertainment. Journal of the International Academy for Case Studies. 20. 23-46. Disponível em: https://www.abacademies.org/articles/jiacsvol20no52014.pdf. Acesso em: 05 de mar. 2021.
JOBIN, Marie Helena & TALBOT, Jean. Tour Planning at Cirque du Soleil. The International Journal of Case Studies in Management (HEC Montreal), vol 9, issue 1, 2011.
MONPETIT, Jonathan. Global circus company Cirque du Soleil files for bankruptcy protection. Disponível em: https://www.cbc.ca/news/canada/montreal/cirque-du-soleilbankruptcy-1.5631354. Acesso em: 25 de nov. 2020.
OFOLETA, Kalechi C. A Cirque du Soleil Business Case study Analysis. Disponível em: https://www.kogonuso.com/a-cirque-du-soleil-business-case-study-analysis-bykelechi-c-ofoleta/. Acesso em: 28 de nov. 2020.
RIFKLIN, Glenn. How Cirque du Soleil’s Daniel Lamarre Sends in the Clowns. Briefings on talent & leadership, Korn Ferry Institute, USA, Q2, Issue 6, p. 46-57, 2011.
ROJAS, John-Paul Ford. Coronavirus: Cirque du Soleil axes 3,480 jobs - but plans to rehire most. Disponível em: https://news.sky.com/story/coronavirus-cirque-du-soleilaxes-3-480-jobs-but-plans-to-rehire-most-12017666. Acesso em: 25 de nov. 2020.
AAKER, Jennifer & JOYCE, Sarah. Cirque du Soleil: Cultivating Creativity and Designing to Delight. Stanford Business Graduate School, 2013. Disponível em: https://www.gsb.stanford.edu/gsbcmis/gsb-cmis-download-auth/376896?pid=. Acesso em: 24 de nov. 2020.
Este caso foi escrito a partir de informações disponibilizadas pela empresa, disponíveis na mídia e/ou com base em outras referências citadas. Não é intenção dos autores avaliar ou julgar a empresa em questão. Este texto é destinado exclusivamente ao estudo e à discussão acadêmica, sendo vedada a sua utilização ou reprodução em qualquer outra forma. A violação aos direitos autorais sujeitará o infrator às penalidades da Lei Nº 9.610/1998 ↩︎